
José Ventura, docente (especialista em Política Social)
A EN100, entre Luanda e Caxito, tornou-se quase um espelho das contradições, na verdade, sempre que o titular do Poder Executivo se desloca às terras do Jacaré Bangão, o tapete asfáltico ganha nova vida, as bermas são retocadas, máquinas e homens apressam-se a dar forma ao “cenário ideal”. Assim foi na inauguração do Porto de Águas Profundas da Barra do Dande; foi aquando da inauguração da Centralidade Teresa Afonso, no Bukula, e assim voltou a ser com o Centro Desportivo Paralímpico José Armando Sayovo, na mesma província.
Como cidadãos á conscientes, não deixamos de questionar: de quem é, afinal, a estrada? Do povo que a percorre todos os dias ou do governante que por ela passa de forma episódica?
A sociologia crítica ajuda-nos a perceber a lógica de poder por detrás de tudo. Não se trata apenas de reparar estradas, mas de reproduzir uma prática desigual: obras são feitas em função da visibilidade política e não das necessidades sociais permanentes. O Estado, que deveria servir a colectividade, age como se o bem-estar dos cidadãos fosse secundário face ao prestígio momentâneo do governante.
O exemplo mais recente é revelador: muitas intervenções no tapete asfáltico foram paralisadas porque, alegadamente, a empreiteira terá sido informada de que o Presidente não mais se deslocaria por estrada, mas por via aérea, como aconteceu neste sábado. Ou seja, se não há comitiva, não há urgência.
Em Caxito, chegou-se ao ponto de lavar o asfalto, recolher o lixo das vias e pintar os lancis. Melhorias de embelezamento urbano que, em princípio, deveriam ser parte da rotina de qualquer município, só ocorrem quando se aguarda a presença presidencial. Isso expõe de forma clara que a lógica da melhoria não é social, mas política: a estrada e a cidade só interessam enquanto palco para o poder, e não como espaço de vida diária para milhares de cidadãos.
Por outro lado, numa óptica funcionalista, esse arranjo cumpre uma função dentro do sistema político. A deslocação presidencial activa uma “mobilização extraordinária”: obras surgem, as máquinas trabalham, e cria-se a imagem de que o Estado está em pleno funcionamento.
Esta lógica, contudo, tem um preço: transforma a estrada em símbolo de prestígio e não em infra-estrutura de serviço social. O funcionalismo explica como o sistema mantém a ordem e se legitima mas também revela aqui a disfunção, quando as melhorias se tornam episódicas e não estruturais, fragilizando a confiança do povo na acção pública.
Precisamos entender aqui que, as estradas não são apenas vistas como corredores físicos de transporte: são instrumentos de política social. Elas representam acesso a serviços de saúde, educação, trabalho, lazer e mobilidade económica. Agora, quando a sua manutenção é orientada apenas pela presença do Chefe de Estado, estamos perante uma inversão de prioridades: a infra-estrutura deixa de cumprir a sua função social contínua e transforma-se em palco de propaganda política.
Ora, a verdadeira política social deve ser pensada como garantia de direitos básicos e universais. Melhorar estradas apenas em função da passagem presidencial e da elite ideo – política significa negar ao cidadão comum, que paga impostos, que depende diariamente da via, o direito a uma circulação segura e digna.
Então, a estrada é um tapete vermelho ou bem comum?
Se a política, como lembrava Aristóteles, é a busca do bem comum, então as estradas não podem ser “tapetes vermelhos” para governantes. Devem ser estruturas sociais para o povo. A manutenção regular e preventiva, voltada à redução da sinistralidade e ao respeito pela vida, conforto para os automobilistas e cidadãos comuns, precisa ser prioridade.
Afinal, governantes passam, mas o povo permanece. E é este último que, em última instância, legitima o poder e sustenta o Estado em tempos eleitorais quando em nossa lógica o povo adquire estatuto de gente importante e que conta.